Martha de Hollanda, a raiz do voto feminino em Pernambuco: a revolução incendiária por cidadania política

Na série “Martha de Hollanda, a raiz do voto feminino em Pernambuco”, dividida em 3 episódios, o LeiaJá resgata a história da primeira mulher a reivindicar o título de eleitor e se candidatar no estado

Martha de Hollanda, a raiz do voto feminino em Pernambuco: a revolução incendiária por cidadania política

Martha de Hollanda publicou um único livro. A produção recebeu elogios da crítica e foi bem recebida por autores de renome na época

Por Felipe Holanda e Victor Gouveia

Nos contornos do Monte das Tabocas, cerca de 48 quilômetros do Recife, surge, na virada do séc. XX, Martha de Hollanda Cavalcanti, protagonista na luta das mulheres por cidadania em Pernambuco. Primeira pernambucana a requerer o direito ao voto e primeira candidata do estado ao parlamento, Martha escreveu uma história de resistência mesmo quando cada linha tentava ser apagada. Deslegitimada pelo feminismo liberal conservador da década de 30, ela se emancipa, funda a Cruzada Nacional Feminina – primeiro movimento de mulheres organizado do estado – e provoca o presidente Getúlio Vargas para que as pernambucanas participassem das eleições.

De uma figura sovada por toda uma cidade à militante e poetiza admirada na Academia Brasileira de Letras, Martha de Hollanda sempre deixou suas convicções claras ainda que tenha vivido entre contrastes. Nascida em 1903, no berço de uma família influente em Vitória de Santo Antão, Martha cresceu acompanhada por políticos, artistas e grandes personalidades da cidade. O luxuoso casarão dos Hollanda Cavalcanti, erguido em 1817, na Rua Imperial, com madeira vinda de Belém do Pará e azulejos portugueses, acomodava em seu térreo a primeira farmácia de Vitória, a Pharmacia Popular, do pai Nestor de Hollanda.

Se respeitasse a tradição da época, Martha seria mais uma menina restrita às aulas de piano e francês. Mas preferiu romper essa expectativa e, logo cedo, se debruçou nos livros de boticária do pai. Às tardes, aquela menina observava o entra e sai de clientes da farmácia e acompanhava os movimentos da cidade da sacada. Às noites, Martha participava dos saraus no sobrado, onde ouvia sobre as articulações políticas do estado e teve contato com a poesia e as novas tendências artísticas do momento.

A cidade com nome de santo cedeu à Martha uma educação religiosa. No futuro, a sacralidade iria assumir forte influência na sua escrita, que também misturava o estilo romântico aos conhecimentos de anatomia dos livros do pai. No fim dos anos 90, os olhos buliçosos daquela menina chamaram atenção de Luciene Freitas, autora da biografia “Uma guerreira no tempo – Um resgate de uma época, Martha de Hollanda e Delírio do Nada”.

Martha aos 13 anos acompanhada dos irmãos Nestorzinho e Maria Belkiss. Foto: Arquivo/TRE-PE

Aquela que ninguém fala

Em visita à irmã caçula de Martha, Maria Belkiss, Luciene viu seus olhos presos àquela mulher diferente de todas as outras nos porta-retratos da família. As roupas, a postura, o corte de cabelo, a maquiagem, tudo a destoava. Tão rápido, Martha tinha atraído Luciene.

“No meio tinha uma moça com cabelo de franja, com um jeito diferente. Ela estava diferente em todas as fotografias, fazendo pose, sabe? Eu perguntei: quem é essa? E dona Belkiss, muito séria, só respondeu: ‘Martha’ e ponto final”.

Luciene Freitas, autora da biografia de Martha de Hollanda. Foto: Júlio Gomes/LeiaJá

Na virada do século passado, as mulheres ainda se abafavam em roupas vitorianas mesmo sob as temperaturas da Mata Norte de Pernambuco. Rosto limpo, cabelos presos e pouco do corpo à mostra representava a moda e o símbolo estético de pureza. Nessa época, o estilo francês já despontava nos cinemas e representava a vanguarda da moda. Martha se inspira nessa tendência de roupas menos pomposas para enfrentar o calor de Vitória de Santo Antão.

Vestidos decotados e sem mangas, barras pouco acima dos joelhos e pálpebras em carvão. O penteado curto revelava a dita sensualidade melindrosa do pós-primeira guerra. Ao andar nas ruas, Martha ia despertando o medo e a indignação daquela cidade, mas assim se expressava: encarando o limite do proibido.

Martha posa ao lado de uma estante de livros. Destaque para o crânio que chama atenção na imagem. Foto: Júlio Gomes/LeiaJá

A exuberância de Martha de Hollanda replicava uma estratégia natural de sobrevivência, pontua Luciene. Como as borboletas, Martha cresce e abre as asas imensas quando percebe a aproximação de um predador. Quer dizer, a borboleta assusta para afastar aqueles que querem lhe anular.

Também não era raro ver Martha em bares frequentados apenas por homens. Antes mesmo de Diadorim de Guimarães Rosa, Martha já se travestia em paletós e acompanhava amigos noite adentro. Entre as mesas, uma intrusa de passeio completo e cigarro entre os dedos, ouvia o que eram considerados absurdos e participava daquelas conversas enquanto secava mais um copo de uísque.

A diversão desse corpo ativista era romper o ideal de recato do fim da República Velha e a missão de Luciene de Freitas passou a ser descobrir os segredos dessa mulher que foi escondida na história do feminismo pernambucano.

“Eu queria saber como uma pessoa que tinha expressão própria podia viver num tempo em que ninguém deixava falar. Eu entrei em sintonia com Martha e passei a tomar à frente da história dela como se fosse comigo”, lembra a escritora.

A arara

Maria Belkiss evitava até mesmo citar o nome da irmã e respondia Luciene em silêncio. Martha era como um mistério que a família se recusava a retirar do esquecimento.

Retrato de Maria Belkiss no sobrado da família Hollanda Cavalcanti. Foto: Júlio Gomes

“A família toda não queria que se falasse de Martha. Naquela época, a hipocrisia era bem maior em relação ao comportamento das mulheres e Martha parece que nunca seguiu o conselho de ninguém. Ela foi ela mesma”, destacou a biógrafa.

Os causos de Martha se propagaram como mau exemplo entre gerações em uma história moldada pelas más línguas de Vitória. Mais um dos que soube da existência da conterrânea através das maledicências foi Pedro Humberto Ferrer, atual presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Vitória de Santo Antão (IHGVS).

Pedro Humberto Ferrer admite o apagamento de Martha na historiografia de Vitória de Santo Antão. Foto: Júlio Gomes/LeiaJá

Ele conta que sua mãe, nascida três anos após Martha, costumava falar bem dela e que outras mulheres da cidade a admiravam secretamente. Contudo, não tinham coragem de expressar tal apreço.

“Era espantoso como ela tinha coragem de ter esse tipo de comportamento porque ela quebrava todo aquele arcabouço da família. A gente pode dizer que, naquela época, ela ‘jogava a família na lama’, porque o conceito que ela gozava não era bom. O pai dela devia sofrer com isso”, disse.

Mano Holanda acredita que a família teve papel no apagamento de Martha. Foto: Júlio Gomes/LeiaJá

Nascido em 1966, 15 anos após a morte de Martha, Mano de Holanda, atual vereador de Vitória, materializa a tia-avó pelo que Maria Belkiss entendeu por bem lhe contar.

“O que tinha Maria Belkiss de muito puritana, muito conservadora, muito religiosa, Martha era o oposto. Eram diferentes, mas se respeitavam”.

A caçula nasce oito anos depois de Martha e assume o encargo de vigiar o que tanto a irmã fazia na sacada do sobrado. O que ela via e escutava, ia dizer à mãe Mathilde. Por puro deboche, Martha passa a chamar Belkiss de ‘arara’ por assumir esse papel de encarregada.

Belkiss se casa com o advogado Mário de Farias Castro e partilha uma vida dogmática de preceitos católicos. Após a morte de Mário, em 1967, Belkiss passou a viver em luto.

“Martha e Maria era água e vinho. A personalidade de Martha era daquela pessoa que faz o que quiser e não se importa com as opiniões. Ela fala por ela, ela está vivendo sendo o que é. E Maria era aquela pessoa religiosa demais, todo tempo que ela viveu era de vestido de manga comprida”, descreveu a escritora.

Aos poucos, Luciene convenceu a amiga e conseguiu iniciar a pesquisa que durou cerca de uma década. O tempo passa e, ainda que limitada pela idade, Belkiss assina o prefácio da biografia da irmã. Ela morre pouco antes da publicação, em 2003, e deixa um envelope para Luciene com R$ 200 para ajudar nos custos da primeira tiragem.

Nem em ossos

Para os moradores de Vitória, Martha estava à frente do tempo. Para Martha, aquele era o tempo dela. Por isso, aquela garota que incomodava tanto a cidade praticamente obrigou os pais a mandarem ao Recife. Ela conclui o curso normal e se forma professora, uma das poucas carreiras aceitas para mulheres na época.

“Martha foi embora para Recife porque a família, que era tradicional, precisava esconder um pouco, sabe?” […] “Era uma coisa tão difícil, que Martha não se enterrou em Vitória”, ponderou Mano Holanda.

Martha questiona crânio como o Hamlet de Shakespeare questionou a existência humana. Foto: Arquivo

A cidade que séculos antes expulsou os holandeses, dessa vez, expulsou Martha na intenção de evitar que aquela “ameaça” à moral contagiasse outras mulheres. Um dos desejos expressos por ela após deixar Vitória foi não retornar nem em ossos.

Dentro da essência repressora da sociedade pernambucana da década de 20, contestar o padrão patriarcal rendeu muito sofrimento à Martha. Luciene lembra de uma passagem em que ela retruca uma tia que zombava do seu penteado alto, também incomum na época.

“’Seu cabelo está parecendo os jardins suspensos da Babilônia’. Aí ela disse assim: ‘e o seu está parecendo com as ruínas de Pompéia’. Ela era malcriada, sabe?”, recorda a autora do livro que resgata a história de Martha de Hollanda Cavalcanti.

As esquinas espalhavam que Martha tinha uma serpente e se insinuava com ela da sacada do sobrado. Além de relacioná-la ao animal bíblico do pecado, outras difamações sempre a tentavam colocar em um lugar de lascívia e libidinagem.

Martha de Hollanda com pescoço, ombros, colo e tornozelos à mostra em 1931. Foto: Arquivo/Jornal Pequeno

Se dizia que Martha deixava os seios à mostra do alto da varanda e que a calçada da farmácia ficava repleta de rapazes que se posicionavam para ver por baixo do vestido dela.

Vitória tinha seu próprio Bataclã, o Salão Azul, e há histórias de que a rua ao lado do bordel foi batizada com o nome de Martha de Hollanda. Mesmo sem provas de traição, seu futuro marido carregou a fama de “corno” e, anos depois, um prefeito disse que bastava colocar cabeças de boi na entrada e na saída de uma rua para homenagear o esposo de Martha.

Por essas mentiras que se perpetuaram na cidade, Martha quebra a promessa de não voltar a Vitória e faz do seu casamento um escândalo.

O escândalo

“No casamento dela, a dama de honra foi um meninozinho loirinho dos cabelos enrolados e nu”, se referiu Mano Holanda ao comentar sobre a celebração que parou Vitória de Santo Antão.

Em 8 de dezembro de 1928, aos 25 anos, Martha de Hollanda se casa com o poeta, jornalista e historiador José Teixeira de Albuquerque, na Igreja Matriz de Santo Antão. No mesmo ano, ela requere o direito de votar à Comarca de Vitória, sendo a pioneira em Pernambuco.

Antes da cerimônia, ela desfila nas ruas da cidade em carro sem capota para mostra a todos que se casaria, como um convite para a realidade difícil de aceitar para os padrões de Vitória.

“Aquilo ali foi para fechar a boca das pessoas. Ela quis mostrar que casaria”, definiu Luciene Freitas.

Teixeira de Albuquerque e Martha de Hollanda. Foto: Arquivo/TRE-PE

Em um vestido curto e enfeitado com detalhes em paetês prateados vindos de Paris, Martha provocava quem lhe atacou durante toda vida. Se a tradição de a noiva revelar o vestido a alguns metros do altar perdura até hoje, Martha tomou o caminho inverso e mostrou a todos o modelo que entraria na igreja.

Os convidados e os curiosos que estavam em frente à igreja viram quando ela desceu do carro e exibiu um buquê tão incomum. Tão incomum quanto tudo que Martha representava para Vitória. O arranjo em armação de arame coberta com gaze tinha flores que se iluminava com uma pilha e realçavam o reflexo do vestido. Tudo era brilho.

O menino nu

Martha crescia a cada degrau da Igreja Matriz e quem via debaixo se espantou com o pajem do matrimônio. O menino Florisvaldo Vieira entrou vestido de cupido, com asinhas, arco e flecha e uma tiara na cabeça. A repercussão foi tanta que a cena até hoje é encarada em Vitória como um desrespeito aos costumes católicos e o apelido acompanhou Florisvaldo até o fim da vida.

Teixeira de Albuquerque, Florisvado e Martha de Hollanda no casamento. Foto: Arquivo/TRE-PE

A criação da sociedade feminista no Recife

De volta ao Recife, a capital efervescente insere Martha nas reivindicações trabalhistas e na busca por direitos sociais. É nas águas do Rio Capibaribe que ela mergulha no ideal feminista e aceita liderar esse processo de despertar em outras mulheres.

Ainda sem direito ao voto, em 1931, aos 28 anos, a pernambucana funda a Cruzada Feminista Brasileira após dissidência com a Federação Brasileira para o Progresso Feminino (FBPP) de Bertha Lutz. Tornando-se protagonista em uma luta por direitos que não encerraria nela e segue até hoje.

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