Martha de Hollanda, a raiz do voto feminino em Pernambuco: a Cruzada Feminista por direitos para as mulheres

No segundo episódio, Martha de Hollanda finca a bandeira do sufrágio no Recife, pede ao presidente Getúlio Vargas o direito ao voto e funda da Cruzada Feminista na capital

Martha de Hollanda, a raiz do voto feminino em Pernambuco: a Cruzada Feminista por direitos para as mulheres

Os frutos de Martha, assim como suas lutas, são colhidos e enfrentados até hoje. Arte: Felipe Santana/LeiaJá

Por Felipe Holanda e Victor Gouveia

Uma promessa quebrada, tantas outras mantidas. Antes do casório que escandalizou a população de Vitória de Santo Antão, Martha requere o direito ao voto na Comarca da cidade, em julho de 28. Seu trunfo tinha base na Constituição vigente de 1891, que não proibia explicitamente eleitores do sexo feminino. Pela primeira vez no patriarcalismo do interior de Pernambuco, a mulher dava claro aceno contrário aos costumes da época.

O juiz Felinto Ferreira de Albuquerque deferiu o requerimento, mas a decisão posteriormente foi modificada através de recurso. Naquele momento, Martha deixava sua mensagem de resistência escrita em letras garrafais. Era só o começo.

Em carta, Martha pede o direito de cidadania política para as mulheres. Foto: Acervo IHGVS

O pedido a Vargas

Outros 40 países já tinham mulheres aptas ao voto. O Rio Grande do Norte foi pioneiro no Brasil, através de Celina Guimarães Vianna, votante em 25 de outubro de 27. Depois da derrota judicial, Martha de Hollanda, com experiência textual pela formação de professora, passou a escrever artigos jornalísticos. Em um deles, pediu ao presidente Getúlio Vargas para que a decisão do juiz Felinto Ferreira de Albuquerque fosse mantida.

“Ela mandou uma carta diretamente para Getúlio Vargas, pedindo permissão de voto, esse direito dela de escolha, de liberdade, de escolher seus dirigentes. Isso realmente na época era assombroso, porque a mulher não tinha direito ao voto. Ela era pioneira nisso. Nisso daí eu a valorizo muito”, crava Pedro Humberto Ferrer, presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Vitória de Santo Antão (IHGVS).

Pedro Humberto Ferrer, presidente do IHGVS. Foto: Júlio Gomes/LeiaJá

A avidez pela leitura herdada do pai, Nestor de Hollanda Cavalcanti, rendeu a Martha o dom da escrita. Além das páginas nos jornais, a feminista queria que suas ideias postas nas teclas da máquina de datilografar virassem livro. Em janeiro de 1929, lançou o “Delírio do Nada”, recebendo dezenas de elogios de intelectuais brasileiros e portugueses.

A obra também foi vista com bons olhos na Academia Brasileira de Letras (ABL), com dois escritores assinando o prefácio do livro: Alberto Oliveira e Coelho Neto. “A ilustre patrícia não precisa, aliás, que sem autoridade e desajeitado como eu neste ofício, eu a escude perante ao público”, diz Oliveira.

Após o lançamento, Martha resolveu ser sarcástica e enviar um exemplar do livro para Benito Mussolini, político italiano considerado figura-chave na criação do movimento fascista.

“Se ele recebeu, eu não sei. Mas que ela mandou, mandou. Ela tinha correspondências em Portugal e na Inglaterra, com escritores. Acho que ela mandou para ‘um milhão’ de presidentes, de ditadores.”

Diga que não tem flores

A boa recepção da imprensa em torno da obra fez Martha iniciar sua segunda publicação, intitulada “Diga que não tem flores”. O livro ficou pronto, mas sua irmã, Maria Belkiss de Hollanda Cavalcanti, impediu que ele fosse lançado. O motivo: enquanto uma irmã era ativista no direito das mulheres, a outra se inclinava à sociedade patriarcal da época.

Belkiss leu os versos da irmã, apagou e reescreveu boa parte da obra. Quando os amigos intelectuais pediram o livro para ser publicado, perceberam que estava rasurado. “Em seus diários, Belkiss admite que rasurou o livro de Martha e transcreveu a cópia rasurada com as palavras e expressões originais em parênteses. As partes que ela apagava, ela copiava no diário entre aspas”, resgata Luciene.

No roteiro original, uma mulher pobre começa a namorar um rapaz, engravida, e depois descobre que ele era casado. “Quando chega no dia em que a personagem morre, foram procurar flores ali nas casas vizinhas, algumas pessoas diziam assim: ‘Diga que não tem flores’. Era a rejeição novamente sobre a mulher, um preconceito muito visível, que dói”, adiciona.

Luciene Freitas, biógrafa de Martha de Hollanda. Foto: Júlio Gomes/LeiaJá

O livro até hoje não foi publicado, nem nunca será. Aquilo que poderia ter sido mais uma contribuição de Martha para a cultura pernambucana e à luta feminista terminou apagado como os outros capítulos de sua história.

As aliadas

Além dos artigos e livros, Martha de Hollanda viu na Rádio Clube de Pernambuco, pioneira do Brasil, uma forma de disseminar ainda mais suas ideias sufragistas. Ela participava de conversas, em sua maioria com homens, teve discursos transmitidos no início da década de 30 e republicados em diversos jornais da época, amplificando a voz das mulheres em Pernambuco.

Alcieide Cabral do Nascimento, autora do artigo “O Feminismo Chega à Rádio: a Militância Sufragista de Martha de Hollanda na Rádio Clube de Pernambuco”, corrobora a importância das mídias. “Os jornais, eram o principal meio de comunicação e de influenciar o debate. Por mais que tivéssemos uma população ainda majoritariamente analfabeta, temos que lembrar que alguém lia, alguém comentava um boato”, contextualiza.

O respeito e a admiração espalharam-se até entre os escritores pernambucanos. A partir dessa repercussão, Martha encontrou uma de suas companheiras na política: Edwiges de Sá Pereira, nascida em Barreiros, em 1884.

Martha e Edwiges trocavam cartas com Bertha Lutz, nascida, em São Paulo, no dia 2 de agosto de 1894. Foi uma feminista, bióloga, educadora e diplomata, considerada um dos maiores baluartes da luta das mulheres na política brasileira.

Bertha tinha voz ativa e orientou que as mulheres solicitassem o direito ao voto nas Comarcas da cidade onde moravam após a Justiça do Rio Grande do Norte conceder o voto à Celina Vianna. Mas Martha de Hollanda, com seu jeito despojado, não queria apenas o direito ao voto, mas ir muito além: ser uma das protagonistas no feminismo no Brasil.

A casa onde morava no Centro do Recife, na Rua do Lima, nº 280, passou a ser frequentada por políticos, intelectuais, admiradores e artistas de ambos os gêneros. Trocando a noite pelo dia quando preciso, Martha de Hollanda ia criando alianças políticas, se munindo de diálogos sobre como as feministas poderiam ofuscar, juntas, o cenário machista de Pernambuco.

A casa onde Martha morou no Centro do Recife. Foto: Júlio Gomes/LeiaJá

Sob o discurso de “união pelas mulheres”, as reuniões atraíram ainda mais a atenção de Bertha Lutz, mas as ideias de Martha eram dissonantes das de Edwiges. Quase antagônicas. Se uma escrevia em tom conservador, a outra ia direto ao ponto, sem ‘arrodeios’ nem floreios.

“Além da digressão literária que faz, a feminista tece uma pequena autobiografia, fala de seus projetos de criar uma revista que receberia o nome da Mulher Brasileira e diz que gostaria de contar com a colaboração das ‘“'[…] companheiras da jornada feminista’”’, reportando-se a Bertha Lutz e a Carmem Portinho. Despede-se de forma efusiva, como era próprio de sua personalidade: ‘[…] com todos os meus beijos, sou a companheira incendiária'”, remonta Alcileide Cabral no artigo “A Cruzada Feminista Brasileira e a Cultura Política em Pernambuco (1927-1932)”.

Outrora aliadas, elas agora “disputavam” a simpatia de Bertha na disputa pela presidência da Federação Brasileira para o Progresso Feminino (FBPP). Entre os anos 30 e 31, veio a decisão.

“Bertha leu aquela carta e deve ter se assustado com aquela garota de 27, 28 anos. [Ela] deve ter dito: ‘Nossa, uma incendiária, a gente não quer isso’. A pessoa mais próxima politicamente, até em termos de idade, e com eu diria, valores mais conservadores, era a Edwiges, não Martha. Por isso a escolha”, avalia Aucileide.

Se a escolhida foi Edwiges, Martha de Hollanda não deixaria por menos. Enquanto compartilhava correspondências com Bertha, já pensava em fundar a Cruzada Feminista Brasileira. Relatos da historiadora dão conta que Edwiges foi convidada à presidência da Cruzada, mas recusou. O caminho, portanto, estava escancarado para a posse de Martha, em 31.

A poetisa, escritora e vereadora do Recife pelo PCdoB, eleita em 2024, Cida Pedrosa endossa a importância de ambas na luta pela cidadania feminina em Pernambuco. Contudo, também destaca a dualidade entre as aliadas.

“As duas foram importantes na nossa luta, mas uma não era tão para a frente nos costumes. Você vê as fotos de Edwiges e vê de Martha, Edwiges com roupas muito comportadas da época, mangas compridas, o vestido até o pescoço, lá em cima. Já Martha, você a vê completamente despojada disso. Ela lutava não só pelo direito ao voto, mas pelo direito de existir como mulher”, observa.

O tema do divórcio à tona

O “existir como mulher” citado por Cida resume os costumes da época, nos quais as mulheres teriam que se ‘curvar’ aos maridos, cuidar da casa, dos filhos e, no máximo, estudar. O machismo entranhado no interior pernambucano foi a deixa que Martha precisava para trazer à tona um tema considerado impensável entre as décadas de 20 e 30: o divórcio.

Martha chocava, ao mesmo tempo que tocava nas feridas da sociedade. “Por que não?”, se perguntava enquanto penteava-se e maquiava-se em frente ao espelho. Se uma mulher casada já era desprovida de direitos, ser solteira ou divorciada era considerado “desquite”, recebendo enxurrada de difamações, geralmente com entonação massiva dos homens.

“As mulheres eram cidadãs de segunda categoria, porque não podiam contratar sozinhas, tínhamos que ter a assinatura do marido. Se fosse solteira, o pai ou o irmão mais velho assinava junto. Nós não estamos falando de uma coisa de 300 anos atrás, estamos falando de quase ontem”, frisa Cida Pedrosa.

Cida Pedrosa, vereadora do Recife pelo PCdoB. Foto: Divulgação

A Lei do Divórcio, aprovada no Brasil em 1977, deu direito às mulheres de novo casamento, mas apenas uma vez. Onze anos depois, a Lei 7.841/89 revogou o Art. 38 da lei anterior, eliminando restrição à possibilidade de divórcios sucessivos, já considerando também uniões estáveis como casamento civil. O direito pleno, porém, só veio com a PEC do Divórcio, em 2010, quando a separação direta foi aprovada em território brasileiro.

Além de dialogar abertamente sobre divórcio, Martha de Hollanda também fazia auxílio social às viúvas, que eram dependentes dos maridos, seja financeira ou emocionalmente, em sua esmagadora maioria. Ali, ia ganhando seu eleitorado e servindo de inspiração para as mulheres pensarem além do casamento.

A ativista ainda precisava de mais poder de fala, mas seguia contrariando costumes, entre bares e vielas recifenses, ganhando mais combustível para não frear sua luta em prol das mulheres. Viriam na sequência as eleições de 1933, quando Martha votou e foi votada.

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