Golpe de 1964 não foi revolução: militarismo, elite e narrativas sobre a ditadura no Brasil
O LeiaJá convidou especialistas no tema da ditadura militar para contextualizar o interesse das elites e de parte da direita brasileira em minimizar e saudar o golpe de 1964 e seus torturadores
abril 1, 2024 - 5:32 pm

Passeata dos Cem Mil na Cinelândia, Rio de Janeiro, em 26 de junho de 1968, quatro anos após o golpe de 1964. Foto: Evandro Teixeira/Acervo Instituto Moreira Salles
Em leituras dos documentos de época no Arquivo Nacional ou dos Atos Institucionais (AIs) assinados durante a ditadura, as menções ao golpe civil-militar de 1964 fazem parecer que o período mais sombrio da história republicana do Brasil se tratou de uma outra época, esta, próspera e defensora dos interesses nacionais. A “revolução vitoriosa”, com toda a pompa de soberania – enquanto se alinhava à agenda política dos estadunidenses – custou ao país 21 anos de democracia, direitos civis e, pelo menos, 434 vidas.
No domingo, dia 31 de março, o golpe de 1964 completou 60 anos. De lá para cá, a democracia trilhou seu caminho de volta aos Poderes e segue interseccionando, com muitos desafios, os interesses de diferentes frentes políticas. Por outro lado, a existência de uma democracia tardia e fragilizada fez com que esse retorno tivesse como legado as marcas do autoritarismo. Seis décadas depois, os saudosos da ditadura mantêm vivo o interesse em tratar o golpe como revolução.
Afinal, o golpe civil-militar pode ser lido como revolucionário? Há premissas históricas e sociológicas que reconheçam a gestão dos militares como algo que revolucionou o Brasil? O LeiaJá convidou dois historiadores especialistas no tema para contextualizar o interesse das elites e de parte da direita brasileira em minimizar e saudar a ditadura.
Revoluções alteram estruturas de poder
O historiador pernambucano Jamerson Kemps, mestre em antropologia e doutor em sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), explica que uma revolução se entende como uma mudança “significativa e radical” da estrutura social. Ou seja, há alteração ou inversão no acesso ao poder entre a classe dominante e as demais. A exemplo da Revolução Francesa, que destituiu a aristocracia e a monarquia na França, e retirou do poder o rei Luís XVI à base da força e da união popular.
“[Revolução] Não é o que aconteceu em 1964. Lá existiu, sim, uma mudança no poder, mas não uma mudança revolucionária na sociedade. Se tem, ali, o apoio da elite militar, de uma parte da elite civil, e de grande parte da elite empresarial. Não há um processo de mudança estrutural, nem uma divisão do poder dos que estavam. Você tem um golpe. Determinado grupo chegando ao poder através da força, de uma orquestra de movimentos, de violência. […] Eles entendiam que o golpe era um mal necessário e, assim, se evitaria a ascensão do comunismo ao poder no Brasil.“
— Professor Jamerson Kemps
Por outro lado, o professor lembra que a ditadura teve êxito em maquiar os próprios indicadores. Com censura à imprensa e à expressão artística, foi fácil exaltar falsas conquistas econômicas e uma suposta diminuição da criminalidade. Assim, se aproximando da ideia de uma época “gloriosa”.
“Não havia espaço para o jornalismo investigativo ou para debates apresentando propostas diferentes. Considera-se mais do que isso: nas décadas de 60, 70 e 80 a mídia hegemônica prevalecia. A TV – que não era tão acessível – era para o cidadão comum brasileiro o principal meio de comunicação. Logo, se ali não aparecia algo que denunciasse ou cobrasse do governo, até o cidadão comum, que tivesse a vida mais difícil, poderia achar que a vida era difícil por outros motivos, como por acaso ou questões divinas, mas não necessariamente por questões políticas ou por falta de liberdade”, ressalta Kemps.
“Milagre econômico” é balela
O professor Helder Remigio, doutor em História do Brasil pela UFPE e um dos entrevistados pelo LeiaJá, explica que a economia foi uma das pautas utilizadas para dar “legitimidade” aos generais golpistas. “Em 1964, tiveram que construir uma pretensão de legitimidade, porque eles não chegaram ao poder dizendo que fizeram um golpe. O discurso proferido pelo Estado brasileiro naquele momento é o de que houve uma revolução democrática”, explica.
O chamado “milagre econômico” acabou produzindo o que se tornou a dívida externa brasileira, após duas décadas de hiperinflação. Neste período, a elite brasileira conseguiu triplicar suas fortunas, enquanto a desigualdade regional crescia no país – sobretudo entre a região Nordeste e as regiões Sul e Sudeste.
“O milagre econômico foi, na verdade, um crescimento extremamente equivocado de uma bolha e isso promoveu o amplo endividamento do Estado brasileiro. Isso precisa ser dito. Além de produzir a dívida externa, produziu uma desigualdade social que até hoje não foi superada no Brasil. Esse milagre dos anos 70 produziu um desequilíbrio nas contas públicas que gerou uma alta inflacionária ao final da década e ao longo de toda década de 80. Só conseguimos superar isso com o Plano Real, nos anos 90”, acrescenta Remigio.

Brasil tem dívida com o passado
Na semana em que o golpe de 1964 completa 60 anos, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ficou em silêncio sobre a ditadura militar. O posicionamento, esperado para o líder de centro-esquerda, reitera a sensibilidade que existe em cobrar, através da memória, as dívidas que o militarismo possui com o Brasil. Preso pela ditadura na década de 1980 e deputado constituinte, Lula disse recentemente que não quer “ficar remoendo o passado”.
“Dentre as ditaduras da América Latina – Uruguai, Chile, Argentina -, todas elas, quando chegaram ao fim, condenaram os principais representantes do período ditatorial; o Brasil não fez isso. Como o grande país que era, o Brasil poderia ter dado o exemplo de justiça de restauração e condenação, mas terminou levantando a bandeira da anistia geral. Anistiou tanto aqueles que foram presos políticos, tidos como subversivos terroristas, como também anistiou os seus algozes. Eles, generais e presidentes militares. Essa anistia geral provocou a sensação de que aquilo não foi um erro, mas um mal necessário”, aponta o professor Jamerson Kemps.
O saudosismo, que passa de ser apenas ideológico, é uma sensação que foi legitimada pelo Estado Democrático brasileiro, ainda que este tenha sido uma vítima. “Temos inúmeros elementos que mostram que a nossa sociedade tem uma cultura autoritária muito forte, ligada aos códigos culturais implantados pela ditadura militar”, completa Remigio.
“Muito se restou da ditadura. A violência presente nas polícias, a maneira como as polícias tratam o cidadão no Brasil, a interferência direta dos militares no dia-a-dia da política do país. O simples fato de discutirmos nas eleições de 2022 ou 2024 que um candidato “A” é comunista e tratar isso de forma pejorativa, mostra que os códigos culturais do passado, do período da guerra fria e do anticomunismo, ainda estão muito vivos. A sociedade brasileira precisa encontrar um caminho à democracia que construa políticas de memória e ressignificação do autoritarismo”.
— Professor Helder Remigio

4 perguntas para entender o golpe e a atualidade
1. LeiaJá: Por que há interesse político, por parte da direita brasileira, em promover o golpe de 1964 como uma “revolução”? Há verdade nisso?
Jamerson Kemps: Na verdade, o interesse é de parte da elite. Ele sempre existiu e, hoje, ganhou mais visibilidade com a ascensão das redes sociais. A internet dá visibilidade a grupos que, logo depois da redemocratização, tinham uma certa vergonha em demonstrar esse orgulho e saudade do golpe. Então, sim, parte da direita ainda defende a ideia de que se tratou de uma revolução, um “mal necessário” para evitar algo pior. A gente não pode esquecer o contexto de guerra fria no mundo e que o Brasil estava situado nisso. Essa parte da elite, fortemente ligada aos interesses dos Estados Unidos – o mundo dividido entre Estados Unidos e União Soviética, capitalismo e comunismo – entendia que era um mal necessário e assim evitaria-se a ascensão do comunismo ao poder no Brasil. Comunismo este que, segundo eles, seria representado pelo governo de João Goulart.
Helder Remigio: A direita brasileira, e hoje, especificamente, a extrema-direita, tem uma tendência a valorizar atos antidemocráticos, a não saber jogar o jogo da democracia. A democracia traz reflexão, diálogo e contrastes de ideias, e esses grupos de direita, tradicionalmente, não estão abertos ao diálogo, portanto, pensam na ideia de revolução de 1964 como uma perspectiva de valorizar esses ideais.
2. LeiaJá: Qual o peso histórico do militarismo na formação da atual extrema-direita?
Jamerson Kemps: Há um peso histórico do militarismo na formação da sociedade brasileira. O autor e sociólogo alemão Nobert Elias fala que, para que a gente perceba, de fato, processos de mudanças significativas em uma sociedade, a gente precisa esperar de duas a três gerações. […] Grande parte da nossa história foi de colônia para, depois, nos tornarmos uma república; república esta que aconteceu via golpe. Mais recentemente, a gente tem a ditadura e a influência do militarismo. Isso caracteriza a extrema-direita no Brasil hoje? Sim, mas não apenas. A extrema-direita é forjada por outras concepções. Ela deixa explícito discursos de ódio e não tem vergonha de esconder isso.
Helder Remigio: Os militares, desde o início da nossa República em 1889 – que, por sinal, começou de um golpe contra a monarquia naquele momento – passaram a ter muita força no cenário político. Isso ocorreu também no período da República Velha, posteriormente, no Estado Novo, na Era Vargas e consequentemente em todo período democrático e na Nova República do Brasil. Os militares acabam interferindo diretamente na política; se sentiam ali uma espécie de poder moderador. A Constituição Federal de 1988 foi mediada pelos militares. É como se tivéssemos, de certo modo, uma sombra dos militares nessa democracia, que é uma democracia permitida, como se precisássemos da chancela dos militares para poder ter democracia.
LeiaJá também: ‘Tortura Nunca Mais: o monumento para nunca esquecer‘
3. LeiaJá: Há conexão simbólica ou prática entre o golpe de 1964 e a tentativa de golpe em 2022?
Jamerson Kemps: Há uma conexão simbólica entre os atos. Ainda se tem duas gerações diretamente influenciadas [pelo golpe de 1964]. O primeiro presidente eleito via voto direto foi Collor, em 1989, assumindo em 1990. É algo muito recente, novo. Além de haver esse saudosismo por um passado militarizado, há muitas pessoas que viveram aquele momento e se beneficiaram por ele. Não é só um saudosismo ideológico, é a saudade de um período em que você foi beneficiado, em que privilégios eram mantidos. É uma tentativa de voltar àquilo, a uma sociedade civil longe do poder, que é o que se encontra em governos autoritários-ditatoriais.
Helder Remigio: É preciso ter cuidado com as comparações. 1964 foi um momento histórico específico, com uma conjuntura específica atrelada à guerra fria, a um espírito antidemocrático dos americanos, e a sociedade civil era outra. O 8 de janeiro é um outro momento, em que as instituições estavam mais sólidas do que em 1964 e conseguiram responder à altura às atrocidades daquela tentativa de golpe. Entretanto, um elemento podemos trazer para esta discussão: o da cultura política autoritária no Brasil, que, de algum modo, dialoga com os dois momentos. A tentativa de tomar o poder em 8 de janeiro nos traz a certeza de que existia o desejo de romper com o processo democrático naquele momento.
4. LeiaJá: A existência dos partidos de extrema-direita representa algum perigo à democracia ou é justamente parte do jogo democrático de representações?
Jamerson Kemps: Existem leituras da ciência política que entendem que essas disputas, por mais polarizadas que sejam, e por mais próximas de um incidente civil ou violência que estejam, fazem parte do jogo democrático de encenação das ideias de disputa; no todo, o sistema macroeconômico se mantém no controle e poder de ambos. Como também é possível analisar que, sim, é uma ameaça à democracia. Considerando o regime democrático e a Constituição Federal sendo colocados em risco, então, sim. Quando se tem a proposta de uma extrema-direita em que o poder é centralizado na mão de uma única pessoa, em que se tem a ideia de um governo militarizado, não há espaço para a participação popular, incentivo à democracia e contraposição de ideias; todos aspectos que caracterizam a democracia.
Helder Remigio: Sim, a extrema-direita representa um perigo à democracia. Todo partido político precisa se amparar nas discussões e preceitos da nossa Carta Magna de 1988. A partir do momento em que toda e qualquer corrente política começa a ferir a Constituição – e a extrema-direita faz isso constantemente – é, sem dúvida, um perigo para a democracia no Brasil. Atualmente, pensando justamente na arquitetura da tentativa em 8 de janeiro, se vê o perigo que a extrema-direita exerce não somente no Brasil, como no mundo – na Argentina com Milei, na Hungria com Órban, e nos Estados Unidos com Trump.