Início da ditadura militar completa 60 anos e o Brasil vê uma nova tentativa de golpe

A atuação dos militares no golpe de 64 marcou profundamente a história do Brasil, deixando no ar a questão: o que mudou em 60 anos?

Início da ditadura militar completa 60 anos e o Brasil vê uma nova tentativa de golpe

Tanques militares ocupam Brasília, em 1964. Foto: Arquivo público/DF

O dia 1º de abril de 1964 marcou a história do Brasil com o início da Ditadura Militar, que durou até 1985. Foram 21 anos do regime que mudou o cenário do país, tendo como resultado crises econômicas, mudança no comportamento da sociedade, assim como a restituição do Estado Democrático de Direito, no qual vivemos até hoje. No entanto, passados quase 60 anos do golpe de 64, Brasília foi palco de uma revolta, no dia 8 de janeiro de 2023, que acendeu um alerta a uma nova tentativa de derrubada do poder. 

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Traça-se, portanto, um paralelo entre o que houve nos conhecidos “anos de chumbo”, com o que quase aconteceu há pouco mais de um ano. O LeiaJá procurou, então, esclarecer algumas questões referentes às influências das redes sociais nos dias de hoje, além de entender o que leva um país a sofrer um golpe de Estado. 

De acordo com o professor de história, Mardok, havia todo um cenário internacional que favoreceu as ações dos militares. Alguns fatos se encaixam em uma linha do tempo, como ele menciona, a partir do final da Segunda Guerra Mundial. “O mundo teria uma nova perspectiva, afinal de contas, vivia-se a bipolarização”, comenta. 

A divisão política entre capitalismo e comunismo, que cravou profundas marcas em relações entre países, como os Estados Unidos e a antiga União Soviética, por exemplo, fez com que o mundo ocidental fosse visto com outros olhos. Além disso, o docente pontua outros conflitos, como a Guerra da Coreia, em 1950, e a crise dos mísseis na Baía dos Porcos, em Cuba. 

Paralelos entre a situação no mundo e no Brasil 

Nacionalmente, o professor pontua ainda outros acontecimentos que antecederam 1964, como a eleição, no início da década, de Jânio Quadros e João Goulart, a “famosa dobradinha Jan-Jan”. Após a renúncia de Quadros, alguns meses depois de sua posse, Goulart, que deveria assumir imediatamente, não se encontrava em território nacional. “Quando (Jânio Quadros) deixa o comando, o vice estava em visita diplomática na China comunista. Uma foto circula, João Goulart com Mao Tse Tung, em plena Guerra Fria”, relata o professor. 

“Um país continental. ‘Se o Brasil virar um país comunista, meu Deus do céu’. Então, o golpe de 64 é fruto dessas circunstâncias, desse cenário. Crises econômicas, políticas, grande instabilidade, tanto externa quanto internamente”, afirma Mardok. 

Vários olhares sobre o golpe de 64 

Mesmo tendo sido um acontecimento histórico, mesmo estando no passado, a ditadura ainda é um período relativamente recente no país. Entre os que viveram durante o regime militar, muitos são sobreviventes da opressão exercida pelo governo vigente. O ex-vice-prefeito do Recife, Luciano Siqueira, é um deles, enquanto ex-preso político. Luciano foi capturado pelos militares e ficou preso por alguns anos, no final da década de 60, tendo também sido torturado. Após tudo o que viveu, ele consegue visualizar os 21 anos de militarismo de diferentes formas. 

“Eu construí, ao longo da vida, vários olhares sobre a ditadura militar de 64. O primeiro olhar, de um adolescente, que era voluntário do Movimento de Cultura Popular, sediado no Sítio da Trindade (Zona Norte do Recife). (…) Eu era um militante adolescente, e assisti a dureza que foi ver aquelas pessoas, que a meu juízo eram comprometidas com o país e com o povo, tendo que se exilar para não serem presas”, contou. 

O ex-prefeito detalhou ter vivido com identidade falsa.

“Eu tive um segundo olhar, de um estudante de medicina, integrante do movimento estudantil, já na geração 68. (…) Então, há esse olhar da resistência, da juventude estudantil, à ditadura. Depois o olhar do estudante cassado, proibido de estudar, por três anos, em qualquer universidade do país, ameaçado de prisão, e que fugiu daqui. Eu e minha namorada, que é minha mulher até hoje, vivemos quatro anos com identidade falsa, fazendo trabalho político clandestino, e sobrevivendo como vendedores ambulantes de roupa no interior do nordeste”, disse. 

“Depois o olhar do preso político que foi torturado, que esteve preso etc. Um outro olhar é do ex-preso, que retorna ao Recife, retorna à faculdade de medicina, e já é aluno de colegas que tinham entrado comigo”, conta em seu relato. 

Paralelo do golpe de 64 com a tentativa do 8 de janeiro 

Mas afinal, o que mudou entre o que aconteceu em 1964 com a tentativa de golpe no ano passado, na ocasião da invasão à Praça dos Três Poderes, em Brasília? Mardok retoma a explicação ilustrando o que se vivia há 60 anos. “Esse período do golpe, na década de 60, foi um período próprio, inerente à circunstância internacional, e que internamente o Brasil vivia um período do populismo. E que populismo é esse? É um movimento de líderes carismáticos, que conseguem muito bem tosquiar, manipular, doutrinar, meios de comunicação e o povo”, comenta. 

Relacionando ao que aconteceu no 8 de janeiro, Mardok pontua que o estabelecimento das instituições democráticas, fortalecidas desde a Constituição de 1988, permitiu que o Brasil, com os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário devidamente fortalecidos, não se deixasse levar pelos ataques ocorridos naquele dia. “A democracia já se encontrava com raízes, o povo amparado pela comunicação com a internet, com os smartphones, já se tem muito mais informações”, observa. 

Uso das redes sociais para manipular as massas 

Por fim, compreende-se que a evolução tecnológica, que tanto vem auxiliando a Humanidade em diversos aspectos, de certo modo, também torna a sociedade refém dos mais controversos ideais. O que foi possível acontecer em uma era “off-line”, não aconteceu no mundo conectado em que vivemos atualmente. No entanto, Luciano Siqueira ressalta ainda a importância das comunicações eficazes para evitar que outros episódios se repitam no futuro. 

“A comunicação digital, não só as redes sociais, mas talvez sobretudo as redes sociais, contribuem negativamente, porque estão alimentando uma comunicação fracionada, imediata, curta, superficial, que ao invés de aproximar as pessoas, afasta as pessoas. Às vezes, até gera a ilusão de que as pessoas estão juntas, no grupo do Whatsapp, por exemplo. Mas o grupo do Whatsapp parece um quadro de avisos que está no corredor de uma escola, disponível para quem quiser pregar alguma coisa. (…) Então ali, cada (pessoa) passa adiante as ideias, ou diz alguma coisa, não há um diálogo propriamente dito. E sem diálogo não há afeto, e sem afeto não há consciência”, finaliza Siqueira. 

Confira as entrevistas no vídeo abaixo: