A vulnerabilidade de quem busca exercer o direito à livre manifestação
Há um mês, um agricultor foi vítima de atropelamento durante uma manifestação político-social no Recife. Mas, infelizmente, esse não é primeiro caso que se tem notícia na capital pernambucana
maio 15, 2025 - 4:14 pm

Manifestação política no Recife. Foto: Rachel Andrade/Arquivo/LeiaJá
A livre manifestação de pensamento, que pode ser externada de diversas formas, é um direito constitucional dado a todos os cidadãos e cidadãs. Grupos político-sociais também podem se reunir para propagar suas ideias e defender seus pontos de vista, como nas manifestações de rua, tendo suas garantias devidamente protegidas. Ainda assim, não é incomum que agrupamentos sofram algum tipo de represália, muitas vezes por parte de forças de segurança pública. No entanto, raros são os casos de violência contra manifestantes em algum ato em via pública, quando a agressão parte de um agente externo.
Mas, foi o que aconteceu com Gideone Sidônio de Menezes Filho, de 67 anos, durante uma passeata na qual ele participava há exatamente um mês, no dia 15 de abril, no Recife. O agricultor participava da Marcha em Defesa da Reforma Agrária e da Democracia em Pernambuco, organizada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), quando foi atropelado por um veículo que estava preso no trânsito.
Tentativas de justificar a violência
O autor do crime está preso preventivamente e deverá responder por tentativa de homicídio. Gideone, por sua vez, passou por cirurgia e segue internado, desde então, no Hospital da Restauração (HR), na Zona Norte do Recife. A assessoria de comunicação do HR informou à reportagem que seu quadro atual é estável, mas não há informações sobre alta médica.
O caso é chocante e chama atenção para a vulnerabilidade à qual certos grupos sociais estão sujeitos quando exercem seu direito constitucional de livre manifestação. O condutor do veículo chegou a justificar que ultrapassou o bloqueio porque estava socorrendo seu avô em uma emergência médica, e ainda que se sentiu ameaçado pelos manifestantes que teriam tentado agredir o carro.
Imagens de uma câmera de segurança que flagraram o momento da ação mostram, no entanto, que os participantes não estavam próximos ao veículo, e que ele avançou na calçada. O infrator ainda chegou a afirmar que não teria visto que tinha atropelado uma pessoa. O caso de Gideone, infelizmente, não é o primeiro que se tem notícia nos últimos anos.
Traumas (quase) permanentes
No dia 2 de outubro de 2021, no contexto da pandemia de Coronavírus, partidos políticos e movimentos político-sociais se reuniram no centro do Recife em um protesto contra o então presidente da República, Jair Bolsonaro (PL). A advogada Isabela Freitas, que também atende pelo nome de Sarev, tinha 28 anos e atuava na Comissão de Advocacia Popular (CAP), da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Na saída do ato, na Avenida Martins de Barros, no bairro de Santo Antônio, próximo à ponte Maurício de Nassau, Sarev foi atropelada.
“O que eu lembro sou eu agarrada no carro pedindo pra não morrer porque eu tenho mãe. E justamente isso, eu não queria morrer por ter uma mãe que precisa de mim pra poder viver/se sustentar, só que eu achava que ia morrer ali”, relata Sarev, em entrevista ao LeiaJá.
A advogada conta que viveu, de fato, momentos de horror, sem entender muito bem o que estava acontecendo. “Eu me vi diante da morte e ao mesmo tempo pedindo pra não morrer. Eu não consigo me lembrar muito, eu me lembro do que eu senti. Um desespero muito grande e uma força pra que eu não soltasse daquele carro, porque se eu soltasse ele passava por cima de mim. E foi o que aconteceu, ele passou”, conta.
Condenação
O condutor do veículo, o administrador Luciano Matias Soares, alegou à época que agiu com medo de sofrer agressões. Apesar de sua tentativa de justificar ter passado por cima da advogada, a 2ª Câmara Criminal do Recife, por meio do relator Mauro Alencar de Barros, condenou ele a seis anos de prisão por tentativa de homicídio qualificado. A sentença veio quase três anos depois, em agosto de 2024, quando o conselho de sentença entendeu que ele cometeu o crime pelo emprego de perigo comum, quando uma ação pode fazer mal a outras pessoas.
Vivendo para superar
Para Sarev, agora com 33 anos, o trauma do ocorrido ainda é vivo, e suas tentativas são quase diárias para superá-lo. “Um atropelamento daquele jeito nunca tinha visto”, diz.
Desde a colisão, ela foi submetida a duas cirurgias. Em sua primeira entrada no hospital, logo após o atropelamento, ficou internada por cerca de três semanas. Seu estado era considerado grave à época, por ter sofrido fratura no tornozelo, traumatismo craniano, e chegou a ter crise de epilepsia após a colisão, quando estava na pista aguardando a ambulância.
Como resultado, sua mãe, que é idosa, sofreu diversos acidentes vasculares cerebrais (AVCs), e atualmente é enferma. As sequelas daquele, Sarev carrega até hoje. “Hoje em dia, mainha ainda sofre as sequelas dos pequenos AVCs que teve. Afinal, ver uma filha de cama, sem saber se vai andar ou não, acaba afetando mesmo. Até hoje, mainha tem fibromialgia, depressão. Eu e ela, a gente ainda se trata de depressão e os danos físicos daquele dia”, relembra.
Hoje, Sarev também é mãe, mas convive com certas limitações ocasionadas pelas sequelas da colisão, o que lhe causa revolta. “Eu não ando normal, eu não consigo ficar em pé por muito tempo, eu não consigo carregar meu filho nos braços por muito tempo por causa dessa pessoa que passou por cima de mim. Uma mãe não poder carregar o seu filho por muito tempo, isso não se explica”, desabafa.
Justiça
Apesar da condenação de Luciano a nível criminal, de reclusão de seis anos, uma equipe de advogados que fazem parte da acusação formulou outra ação, a nível cível. O condutor deveria ter pagado uma verba indenizatória, mas a vítima ainda não recebeu o montante.
Na montagem da documentação, a equipe trouxe argumentos que mostram que a atitude do condutor foi um crime de ódio. O advogado Rafael Lopes afirma que a tentativa de homicídio contra Sarev foi o resultado de uma série de outros fatores. De acordo com ele, a narrativa vinha acontecendo há anos, muito antes do dia 2 de outubro de 2021. “É perceptível como o ódio mobilizado em forma de gestão política tomou a ação e o discurso das pessoas no Brasil e no mundo. É perigosa a crescente sensação de representação nesse movimento ligado a ideologias extremistas”, destaca.
“O não gostar faz parte do jogo político. Mas o ódio articulado nos discursos políticos gera tais violências de modo que é conveniente passar por cima de uma pessoa com um carro, sem hesitar. É uma ação que assusta dada a intolerância”, pontua.