As causas e consequências do vício em apostas e como superá-lo

O vício em aposta vem tomando força nos últimos anos no Brasil. Saiba como proceder

As causas e consequências do vício em apostas e como superá-lo

Psiquiatra explica que a facilidade de acesso a plataformas faz com que a dependência aconteça sem nem se perceber. Foto: Joédson Alves/Agência Brasil

A permissão de funcionamento de casas de apostas on-line no Brasil trouxe, entre tantos assuntos, um problema grave: o vício. Comissões especiais no Congresso Nacional vêm aprovando, nos últimos meses, o funcionamento de empreendimentos como cassinos, casas de aposta, jogo do bicho e de bingo em território nacional. O governo federal também liberou portarias permitindo que empresas do ramo possam estabelecer comércio, por meio de regulamentação tributária. No entanto, em praticamente nenhum momento especialistas de saúde foram chamados para apontar os riscos de dependência da população.  

O Banco Central, por exemplo, apresentou estudo indicando que 5 milhões de beneficiários do Bolsa Família gastaram R$ 3 bilhões em apostas no mês de agosto. Além desse, outros dados alarmantes apontam sintomas de um problema que órgãos competentes não parecem querer ver. O Instituto Paulista de Ensino e Cultura (Ipec), antigo Ibope, levantou que 28 milhões de brasileiros já fizeram aposta on-line alguma vez na vida. Mesmo que o valor represente apenas 18% da população, mais da metade dessa parcela afirmou na mesma pesquisa que das vezes que apostou perdeu mais do que ganhou. 

A pesquisa do Ipec apurou ainda que, no mês de agosto, período em que as entrevistas aconteceram, cerca de dois terços da população que declara ter feito apostas on-line nos últimos 30 dias, gastam até R$ 100 por mês. 

“Já por outro lado, 55% afirmam que ‘o dinheiro que gastam em apostas em jogos online faz falta no fim do mês’, 49% dizem que ‘jogar jogos de aposta online para eles é um vício’. 48% também declaram que ‘quando perdem, costumam jogar de novo para tentar recuperar o dinheiro perdido’ e 47% ainda sustentam que ‘costumam se arriscar para tentar alcançar maior ganho financeiro’. Finalmente, ainda aparecem 28% afirmando que ‘gostariam de parar de jogar, mas não conseguem’”, diz o relatório do Ipec. 

O vício silencioso em aposta 

A reportagem conversou com o médico psiquiatra Rivaldo Farias de Melo Júnior sobre o vício em bets. Rivaldo é diretor-técnico de um hospital que atende pessoas com quadro de dependência, no Recife. Ele explica que a dependência acontece a partir de estímulos constantes que um indivíduo busca para liberar a dopamina, substância ligada ao prazer.

“Sendo que, com o tempo, aquele prazer que você sentia já não era mais suficiente. Então, você vai precisar de cada vez mais intensidade, seja nas drogas, seja no jogo, para você conseguir atingir uma saciedade”, conta. 

Foi o que aconteceu com Pedro Silva*, de 34 anos. Em 2019, ele começou a apostar em futebol, a princípio como uma maneira inocente de se divertir. “O futebol sempre foi algo que me conectava com amigos, e a ideia de ganhar um dinheiro extra parecia atrativa. Entre 2020 e 2022, as coisas estavam indo bem, com lucros anuais consideráveis. Isso me fez acreditar que eu tinha uma estratégia sólida, que eu ‘sabia’ como ganhar.” 

“Mas o problema começou quando, no final de 2022 e durante 2023, os resultados começaram a piorar. Em 2023, a maré virou de vez e, na primeira metade de 2024, perdi muito mais do que ganhei. Só então percebi que aquilo já não era mais só diversão, era um vício”, relembra. 

Ministro do Esporte diz que bets são ‘benéficas’

De frente com a dependência 

Pedro conta que em meados de março de 2023 começou a sentir que o ritmo das apostas estava saindo de seu controle. “Eu estava apostando com frequência maior, mesmo quando sabia que não era uma boa ideia. Antes, eu só apostava com valores que sabia que podia perder sem grandes prejuízos, mas nesse período comecei a tirar dinheiro de reservas importantes, e, quando percebi, já havia comprometido o orçamento.” 

“Um episódio que me marcou foi quando precisei adiar o pagamento de contas para continuar apostando, acreditando que recuperaria tudo. Isso me fez perceber que havia passado do limite”, diz Pedro. 

O problema maior com o vício em jogo é que, de acordo com o psiquiatra Rivaldo Farias, diferente de compulsões alimentares ou dependência química, em que existem certos limites físicos para consumo, os limites para jogar são menos rígidos. “A capacidade que você tem de fazer dívidas, de fazer uma destruição do patrimônio com jogo, é absurda. É muito maior do que com qualquer outra coisa”, alerta o médico. 

Farias explica ainda que a facilidade de acesso a plataformas faz com que a dependência aconteça sem nem se perceber. Diferente de drogas ou álcool, em que existe um ponto que fica visível o estado de saúde do indivíduo, as apostas são mais fáceis de disfarçar. É nesse momento que o combate ao vício pode ser feito com ajuda das pessoas mais próximas, sendo a família o principal meio. 

“Existe determinado momento que o vício é tão intenso que a pessoa perde a capacidade de autodeterminação. Ela não consegue mais definir o que é melhor para ela, porque ela está vivendo somente para aquilo, a vida dela fica em torno daquilo. Então muitas vezes os pacientes que estão vivenciando alguma compulsão, por exemplo, o jogo, chegam para um internamento, para um acompanhamento via família”, afirma. 

Caminhos para a recuperação 

Apesar de o debate sobre vício em apostas ser relativamente recente, as formas de identificar e combater, em geral, são mais antigas. Geralmente, é possível notar sinais, mas a iniciativa deve vir diretamente da vítima. “A primeira coisa que a gente precisa tentar trabalhar na pessoa é a humildade e a honestidade, dela entender e dela reconhecer que isso é um problema, reconhecer que estava saindo do controle, e que precisa de ajuda”, diz o especialista. 

Rivaldo Farias explica que o tratamento de um quadro de dependência em apostas pode contar com uma equipa multidisciplinar. “Então a partir daí a gente consegue ter acompanhamento com psicólogo, que vai ajudar a pessoa a se reorganizar na própria vida, com um conselheiro, que vai ajudar a pessoa a entender que precisa evitar hábitos, lugares, pessoas que também estão envolvidas nessa dependência. Precisa, muitas vezes, de medicação para diminuir a ansiedade, aquela vontade de jogar”, resume. 

No momento que percebeu que precisava de ajuda, Pedro passou a pesquisar sobre o assunto e buscou um grupo de apoio. “Encontrei materiais e relatos de pessoas que passaram pelo mesmo e procurei grupos de apoio online. Comecei a botar limites rígidos nas apostas, algo como ‘não vou gastar mais do que 40 reais por mês’, mas, mesmo assim, percebi que precisava parar de vez”, afirma. 

Há três meses Pedro não faz mais depósitos em sites ou aplicativos de apostas. Ele conta, no entanto, que a mudança não tem sido fácil, mas que tenta focar em novos hábitos para se livrar dos antigos. 

“Hoje, me concentro em outras atividades, como praticar esportes e estudar. Falar com amigos e familiares sobre a situação também foi fundamental. Manter a mente ocupada e ter clareza sobre minhas finanças ajudou muito”, conta. 

Combate ao vício em todas as esferas 

Além do autoreconhecimento e de apoio multidisciplinar, a responsabilidade de combater a dependência recai, por fim, nos braços de quem permite sua acessibilidade: as autoridades. Pedro cobra uma regulamentação dos jogos de apostas no Brasil, além de programas de educação financeira.

“Hoje esses sites operam de forma muito livre e isso atrai muita gente que não entende os riscos envolvidos. A regulamentação pode ajudar a tornar o ambiente mais seguro, impondo limites e exigindo transparência das empresas. Eu acredito que o Estado deve, sim, implementar mecanismos de proteção, como limitar os valores de aposta ou criar sistemas que permitam a autoexclusão permanente do apostador. Além disso, deveria haver uma campanha educativa sobre os riscos do vício e formas de prevenção, como já existe em outros países.”, finaliza. 

*Nome fictício para preservar a identidade da pessoa.