Mortos e ‘inadimplentes’: ossuário da Basílica do Carmo expõe dívidas de familiares com cobranças em jazigos

Mais de 300 ossuários dentro da Basílica do Carmo foram etiquetados com avisos sobre inadimplência no pagamento de taxa

Mortos e ‘inadimplentes’: ossuário da Basílica do Carmo expõe dívidas de familiares com cobranças em jazigos

Avisos de inadimplência em cima dos jazigos da Basílica do Carmo. Júlio Gomes/LeiaJá Imagens

Dentro da Basílica do Carmo, no Recife, logo à esquerda da entrada principal, estão depositados os restos mortais de centenas de fiéis. Os ossuários individuais são administrados pelo reitor da igreja, Frei Cidmário Bezerra. Foi o religioso que etiquetou os jazigos com avisos de inadimplência para cobrar a família dos falecidos. 

Cada um dos 460 jazigos empilhados na saleta dentro da basílica da padroeira do Recife é alugado pela Província Carmelita de Pernambuco por uma taxa anual em torno de R$ 280 – cerca 20% do salário -mínimo. Após a assinatura do contrato com a Igreja, os familiares assumem o compromisso de pagar em dia para garantir a preservação do espaço. 

Em janeiro de 2023, o Frei Cidmário Bezerra foi designado reitor da basílica e se espantou com a situação de inadimplência em 75% dos ossuários. Em uma realidade de abandono, ele conta que muitas famílias esqueceram seus entes e não os visitam há mais de 20 anos. 

“Atualmente, a gente não tem espaços disponíveis porque muitos estão inadimplentes, de 20 anos que não visita, de anos que não cuida. Então, a gente está querendo resolver isso para atualizar ou retirar e passar a concessão para outras pessoas depois”, disse o reitor da basílica. 

Interior da Basílica do Carmo. Júlio Gomes/LeiaJá Imagens

Para pressionar os endividados a regularizar os pagamentos, Frei Cidmário teve a ideia de colar etiquetas em cada jazigo inadimplente. As cobranças destacadas em amarelo apareceram em cima do nome dos falecidos e começaram a chamar atenção no último ciclo de Finados, período em que mais visitantes passam na sala. 

INADIMPLENTE: REGULARIZE A SITUAÇÃO DO JAZIGO NA REITORIA DA BASÍLICA, advertem as etiquetas.

Os visitantes e os ossuários são separados por uma grade. Júlio Gomes/LeiaJá

Banner avisa que jazigos com dívida serão desocupados

Outra maneira de chamar a atenção dos fiéis inadimplentes foi pendurar um banner nos fundos da basílica. O aviso destaca o trecho do contrato que autoriza a transferência dos restos mortais com dívidas de três anos para um jazigo coletivo. 

“A gente colocou um grande banner no fundo da igreja colocando a situação, mas a gente não quer retirar e ter problemas na Justiça depois”, entende Cidmário, que admitiu que os avisos de inadimplência não estavam previstas no contrato. 

Banner nos fundos da basílica cobra fiéis inadimplentes. Victor Gouveia/LeiaJá

Fiéis que frequentam a igreja denunciaram o caso de constrangimento, mas o religioso garante que nunca foi questionado sobre como expôs os falecidos.  

“Até hoje, chegou ninguém para criticar nem para ‘soltar os cachorros’ conosco. Eu não vi ninguém chegar lá reclamando, só uma pessoa questionando. Mas até hoje não teve nenhuma discussão, nenhuma confusão”, afirmou.  

Da mesma forma que não houve reclamações diretas à reitoria, as placas de cobranças surtiram pouco efeito com relação às dívidas. 

“Algumas pessoas que viram a plaquinha de que tava inadimplente foram lá, regularizaram, conversaram conosco, parcelaram também. Outros estamos procurando devagarinho”, mencionou Bezerra. 

O reitor da Basílica do Carmo, Frei Cidmário Bezerra. Reprodução/Redes Sociais

Cadastramento desatualizado

A busca ativa citada pelo reitor se dá por cartas, mas nem todos os mais de 300 inadimplentes foram avisados formalmente. Frei Cidmário afirma que iniciou a busca postal antes de etiquetar os ossuários, mas não soube informar quantas mensagens foram entregues e quando começaram os envios.  

Ele explica que as cartas são entregues com AR (Aviso de Recebimento) e convidam os familiares a regularizar os pagamentos e atualizar os cadastros. Para quem não conseguir quitar a dívida com a Igreja, resta a opção de retirar os restos mortais do local para abrir espaço a um novo interessado. Segundo o religioso, a procura é muito alta, mas todas as unidades estão ocupadas. 

Apesar da intervenção no interior da basílica com a justificativa de encontrar os inadimplentes, o administrador ainda não quis levar a cobrança para fora dos portões da igreja. As redes sociais da Basílica do Carmo, por exemplo, ainda não trouxeram publicação sobre o assunto.

Recorte com as publicações do perfil da Basílica do Carmo no período de Finados. Reprodução/Redes Sociais

A Arquidiocese de Olinda e Recife foi procurada pela reportagem e reiterou que a responsabilidade dos jazigos é do provincial carmelita.

Em novo contato com Frei Cidmário Bezerra, dias após a primeira conversa com a reportagem, o religioso informou que já havia solicitado a retirada de todas as placas de inadimplência dos ossuários. 

Cobrança pode parar na Justiça

O advogado especialista em Direito do Consumidor Ricardo Faustino entende que a contestação de parte dos fiéis é legítima. Ele conta que a cobrança deveria ter sido feita de forma pessoal e que a exposição configura constrangimento. 

“A colocação da placa informando que aquele contratante está inadimplente é passível de indenização por danos morais por razão do constrangimento. Ele e a situação financeira dele não podem ser expostos dessa maneira”, disse o especialista. 

Visão dos ossuários de fora da igreja. Júlio Gomes/LeiaJá

Para o advogado, o primeiro erro da reitoria da Basílica do Carmo se deu na falta de atualizações dos cadastros. Faustino explica que as pessoas que se sentirem lesadas podem procurar o Juizado de Pequenas Causas, já que o valor de uma eventual indenização ficaria abaixo de 40 salários-mínimos. 

Altar dentro da Basílica do Carmo. Júlio Gomes/LeiaJá

Inadimplência é insustentável para a Igreja

Cidmário Bezerra ressalta que a taxa é cobrada pela igreja para manter os custos do espaço, como energia elétrica, limpeza e a manutenção, e que a Basílica do Carmo não dispõe de recursos para continuar cobrindo os jazigos inadimplentes. 

“Se a gente não tiver como chegar a essas pessoas, não vai ter como manter. Como vou manter uma coisa se não tenho recursos para tal finalidade?”, questiona o frei. “O que a gente não quer é manter como está: uma estrutura que precisa ser melhorada e as pessoas que têm seu jazigo elas não tão arcando com seu compromisso”, reclama. 

A Basílica do Carmo fica localizada na área central do Recife. Júlio Gomes/LeiaJá

A última intervenção na saleta foi feita justamente para o último período de Finados. Segundo Frei Cidmário, foram destinados mais de R$ 4.500 para trocar lâmpadas, renovar a pintura e dar uma melhor condição de visitação ao espaço. 

“Quem deveria fazer isso era os próprios parentes que têm jazigos lá e não estão cumprindo. Teve até o dia que uma senhora veio discutir comigo depois de uma missa e disse ‘eu pago em dia, mas tá uma sujeira, tá uma bagunça’. Eu tive que ficar calado porque ela tem direito de cobrar pelo que ela está pagando, mas, em compensação, eu expliquei que há uma grande quantidade de pessoas que estão aí sem honrar com seu compromisso também”, reprovou o frei.

Imagens da saleta do ossuário. Gravação borrada para não expor os nomes. Imagens: Júlio Gomes/LeiaJá