Tortura Nunca Mais: o monumento para nunca esquecer
O monumento encara os 60 anos do golpe militar como ponto de encontro das manifestações no Recife
abril 1, 2024 - 1:37 pm

Às margens do Rio Capibaribe, uma figura sufocada pelos horrores da ditadura militar materializa a luta ainda travada por movimentos sociais do Recife. Ponto de encontros e partidas de manifestações, o monumento Tortura Nunca Mais representa muito mais que o sentimento de vitória dos que resistiram pela redemocratização do Brasil.
–> Anatália de Souza, vítima das crueldades da ditadura militar
Uma moldura de concreto, uma chapa de aço e um homem pendurado pelo umbigo. O claro desagravo ao método de tortura conhecido como ‘pau de arara’ impacta ao primeiro olhar. Nesses 60 anos do golpe militar, a obra vai receber um ato, nesta segunda (1º), para relembrar os 21 anos do domínio das Forças Armadas, em um esquema de corrupção e desrespeito aos Direitos Humanos.

“Não quero torturar mais um”, Demétrio Albuquerque.
Ao mesmo tempo em que a intenção do escultor Demétrio Albuquerque é nítida, a subjetividade transborda pela musculatura firme da figura de semblante aguerrido que ocupa a Rua da Aurora.
“Às vezes a gente pode ser mais incisivo sendo mais subliminar […] Falar sobre quantos morreram é um dado frio, mas você sente a dor e as pessoas sentem a dor daquela figura tá ali. Não importa somente a questão política”, condensou o artista plástico.
Demétrio abriu seu ateliê para a reportagem do LeiaJá e comentou sobre o processo de idealização da obra e como ela tomou novos impulsos com as mudanças do cenário político do Brasil.
Aquele homem forte delineia o (re)nascimento de uma nação corajosa após um momento de atrocidades. Portanto, ali não está representada uma vítima, e sim um feto.
A grande contestação de Demétrio Albuquerque recai sobre a forma como os Direitos Humanos foram ignorados no período militar.
“A vergonha não é dele, é nossa de deixar aquilo acontecer”

Monumento contrariou Abelardo da Hora
Em 1988, quando o monumento venceu o concurso de reurbanização do Centro do Recife, um movimento de artistas e escultores pediu que a premissa do monumento fosse cedida a Abelardo da Hora.
Elevado a um dos maiores nomes da escultura nacional, o ativista cultural era secretário de Educação e Cultura na Prefeitura do Recife e foi afastado da função após o golpe. Em seguida, Abelardo foi preso, torturado e teve parte do seu acervo destruído pelos militares.
Demétrio cita Abelardo carinhosamente como “mestre” e lembra da sua cobrança por um monumento mais denunciativo, que atacasse mais o regime.
“Ele falou que eu fui muito ameno. ‘Você foi muito ameno, você tinha que ser mais denunciativo’, mas eu fui mais para a questão dos Direitos Humanos […] É feito um filme, você não pode ser muito explicito no roteiro e não deixar alguma coisa para o espectador completar”, destacou.

Com a ascensão da extrema-direita no Brasil, os ruídos por um novo regime ecoam com menos vergonha. O movimento que, por vezes, se confunde com o fascismo foi normalizado e deixou os porões para tentar reescrever a história.
Muito dessa ânsia por um novo golpe foi incentivada pelos ex-líderes do Executivo, Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão, ambos militares de carreira. Foi no governo passado que os “aniversários” do golpe militar foram comemorados ao mesmo tempo que se tentou divulgar a ditadura como “revolução”.
“A Marcha da Maconha, o Movimento Negro, o LGBT, todos usam o monumento como ponto de chegada ou partida das suas passeatas, mas os parentes dos desaparecidos e outras pessoas da comunidade fizeram movimentos lá também por conta do ‘louvar’ desse governo à tortura”, disse Demétrio.
Em seus mais de 30 anos, o monumento Tortura Nunca Mais atravessa o tempo como uma memória viva de uma cidade que ainda questiona sobre o processo de apagamento das atrocidades do regime de exceção.
“A arte não serve para resolver outros problemas. Problemas sérios se resolvem com seriedade, mas ela serve para pensar e desembaraçar as ideias”
A herança da ditadura
Numa realidade em que o passado tenta ser reescrito e muito dos autores do golpe seguem privilegiados pelo Estado, a violência e a impunidade deixados pela ditadura se estabeleceram estruturalmente.

“Quando bateu 20 anos, nos reunimos para bater uma foto atualizada da equipe na frente do monumento. Chegamos lá e daqui a pouco as motos da Rocam cercaram o monumento, naquele espalhafato deles, e eu [pensei] ‘vixe, de novo. Vamos ser presos’. Eles disseram que tava vindo uma passeata e aí eu cheguei para um deles e disse ‘bate uma foto aqui para nós?’. Aí o cara se recusou. Eu disse ‘por que não?’. Aí o chefe da operação [disse] ‘vamos bater a foto dos meninos, se junta aí’. E nós fizemos a foto junto das motos da Rocam’”, lembra Demétrio.
Ele ainda lamentou que a pressão em torno da obra impediu que o modelo pretendido pelo Movimento Tortura Nunca Mais Apesar fosse levado para outras cidades. Apenas a capital pernambucana possui uma estátua da iniciativa.